O VELHO ENGENHO
O velho engenho
gemeu calado. Estremecido nas suas lembranças recordou do seu antigo e primeiro
dono, o João Carlos, depois o segundo, o Pedrinho Carlos, depois o terceiro, o
seu dono Vermelhão e agora a quarta, a menininha da balança. Pensou com os seus
botões quantas mudanças! Ouvia ainda o soco da mão no pilão, o cantarolar das
mulheres catadoras de café, o ruído da máquina de beneficiar o arroz em palha. Olhou ao lado
viu o terreiro de pedra vazio sem o arrastar dos rodos para a secagem de arroz
e café em grãos. E
os carros de bois que chegavam cheios até o fueiro cantando a mesma melodia
sonolenta. O grito do carreiro, a boiada aparelhada, os braços fortes para o
descarrego das mercadorias. Bons tempos...
Depois se lembrou de
quando ficou por tantos anos vazio e inútil assistindo aos voos rasos dos
morcegos, o choramingo dos gatos no cio, as andorinhas que na beirada do
telhado que se escondiam para fazer seus ninhos... Hoje elas estão lá, de
ferro, lindas, mas não fazem alarido nem têm filhotes para alimentar e fazer
bagunça.
Pensou no cheiro da
comida da Anna, nas crises de asma do Amerco, (do cheiro ativo do seu cigarro
feito de uma planta fedida chamada trombeta, para aplacar as suas crises), do
pigarrear do Joaquim ouvindo a Rádio Aparecida ao cair da noite e das prosas
longas do Seu Bertolino e do Sebastião Luz nas tardes de verão.
E o seu dono Vermelhão,
cheio de infantilidades contando as suas lorotas ou brigando feio com o irmão
que insistia em administrar tudo com responsabilidade? Onde estará? Como
estará?
Recordou também dos
casos de amor clandestino que ali presenciara. Coisas dos seus donos e que ele
como bom confidente não revelou pra ninguém. Era fiel e não gostava de conversa
boba. E a sua dona, a Dama de Preto? Silenciosa, observadora, sofredora das
amarguras da vida... Encantou-se e partiu para sempre...
Pensou quando as
crianças foram para o internato e ele ficou mais triste sem a movimentação
delas, conversando, brigando, guardando e tirando as bicicletas. E as gaiolas dos
meninos, dependuradas (os pregos ainda estavam lá em suas paredes), os
canarinhos cantando, as brigas de galo que ele as assistia e se divertia...
Mas houve também
tragédia! O dia que o rio se zangou e o aguaceiro subiu, seu dono se desesperou
protegeu a família e apenas com o chapéu na mão subiu o morro deixando-o sozinho
imerso no aguaceiro. Foi triste, muito triste... A criação berrando, as
galinhas indo embora na correnteza e tudo se perdendo tão rápido.
Com muito trabalho seu dono cheio de esperança
reconstruiu tudo e ele voltou a funcionar na lida do café, da torrefação e do
arroz a pilar.
Muitos anos se passaram. Certo
dia de desaviso depois de vários dias de muita chuva sua parede frontal não
agüentou e veio ao chão. Seu dono Vermelhão ficou desesperado sem saber o que
fazer. Sua companheira com cautela juntando boas idéias foi lhe acalmando e
sugerindo que o consertassem dado o valor histórico que ela, só ela via nele. A
Dama de Preto já havia morrido e só ela olhava para ele com olhar de carinho.
Confesso que o velho Engenho chorou quando seu dono Vermelhão sentenciou que ia
lhe derrubar. Quanta ingratidão! Ela protestou brava pela primeira vez. Ordenou
ao marido que vendesse algumas cabeças de gado (porque gado nasce e cria todo
dia) e um Engenho como aquele, nunca mais. Depois de derrubado como fazer outro
igual? A sorte dele foi que o dono Vermelhão meio carcomido pela doença
emocional, aceitou e com dificuldades chamou indicado por ela, um profissional
entendido em madeiras para lhe reformar. Foi difícil, não havia recursos
disponíveis. Assim o casarão permaneceu de pé. Ela administrou tudo dentro do
que pode. O dono vermelhão caiu em depressão e nem da cama saía.
Pelo menos o Engenho suspirou
aliviado. Estava fora do perigo da ameaça da demolição. Virou depósito de sacas
e mais sacas de arroz de um comerciante avarento que não pagava um tostão pelo
seu serviço.
Em sua frente havia uma
frondosa mangueira (todos se beneficiavam da sua acolhedora sombra) que uma das
filhas do seu primeiro dono havia plantado. Era manga baiana, fruto doce e
saboroso. No seu galho mais forte o seu dono Vermelhão pendurou uma gangorra
para a menina dele se balançar. Foi muito bom... Ela balançava e seus
cabelinhos cacheados se assanhavam ao vento e era uma risarada de dar inveja.
Mas a velha mangueira adoeceu e morreu apesar de todos os cuidados...
Acontece que as coisas
mudam. Seu dono Vermelhão também morreu como o seu primeiro dono, o segundo, a
Dama de Preto, a Anna, o Amerco, o Joaquim, o Bertolino e o Sebastião Luz.
A casa da família
reformada e bonita ficou fechada. Ao lado o casarão ficou sozinho testemunhando
tudo.
Então ele passou a ser
da sua quarta dona, depois da morte do dono Vermelhão, inesperadamente. Agora a
“manda chuva” é a menininha que há pouco balançava nos galhos da mangueira. Ela
o via fechado e pensava em lhe dar um novo destino. Ele começou a ficar
preocupado com as conversas que de todos ouvia. O que seria dele???
Um dia apareceu um
bando de pedreiros armados de ferramentas. Encheram-no de material de construção
e começaram a lhe modernizar. Ganhou portas e janelas novas e seguras. Ganhou
um piso bonito, cozinha, iluminação, despensa, banheiros e até um varandão. Qual
seria o seu novo destino???
Então veio a
grande surpresa! Ficou bonito, com cara de “coroa” recauchutado. Eles pintaram
as suas paredes e portas, abriram espaços e à noite apareceu um grupo de músicos
que subiu no seu palco (que antes era o acento da máquina de beneficiar arroz)
e começou a tocar muitas canções. Todos riam e cantavam. A nova dona parecia
cansada, mas estava alegre e satisfeita, (era seu aniversário), realizada com o
resultado do seu esforço. Com os convidados chegando foi uma noite de festa.
Calado ele via tudo
isso. Começaram a inventar até nome novo para ele. Que absurdo!!! Isso ele não
aceita não! Já tendo certidão de nascimento de quase cem anos e se chamando
ENGENHO, com muita honra como mudar de nome? . Exigiu respeito! A companheira
do seu dono Vermelhão, a única presente e viva, para contar a sua história
também não aceita que mudem o seu nome “engenhoso” e bonito e tão antigo quanto
ele.
Com uma coisa ele ficou feliz
um pedacinho de dele, antigo e original ficou guardado em vidro dentro de uma
moldura para mostrar o quanto era velho e também a marca da enchente que o
inundou.
Vai se lembrar de sempre
com saudades do seu dono Vermelhão e do seu irmão, o grandalhão do Zé Roberto, da
Dama de Preto e de todos os netos, amigos e parentes que o amaram e que também
com fidelidade serviu no seu ofício.
Agora é vida nova. Tem
que se acostumar e pensar que os tempos mudam, as pessoas morrem, os velhos
passam para outras mãos. Só espera que a nova patroinha, a menininha da balança
o ame da mesma forma que a mãe dela, companheira do seu dono Vermelhão o ama e
respeita sem interesses, somente pela beleza da sua história. Ele tinha que
contar estas verdades, elas fazem parte de tempos que passaram, mas que estão
presentes dentro dele, pulsando em seu coração, latejando em suas veias.
Confessa que chorou quando viu as andorinhas pintadas
enfeitando uma das suas paredes
principais, trouxeram-lhe fortes lembranças da cantoria que as antigas e vivas
faziam ao construir seus ninhos para berçário da “filhotada” que ele as abrigava
com carinho até que depois voassem livres.
A
modernidade foi vencedora não adianta viver de passado. Agora é enxugar as
lágrimas, continuar a servir e esperar que continuem a lhe chamar de – ENGENHO
- ah, isso ele exige!
VELHO ENGENHO
Casa de Festas e Eventos
A velha mangueira, a gangorra e a sede do Sítio Barra do Sapé, de Filhinha Magalhães e filhos.
Dizem que virou “casa
de festa”. Protesta enfurecido. Chama-se ENGENHO até a morte e pronto! Quem
tiver dúvida que procure a sua certidão de nascimento! A quem pertence???
Responde sem tropeçar: a todos que o amaram e que fizeram parte da sua
história...